domingo, 30 de junho de 2013

A sereia parou de sorrir



A SEREIA PAROU DE SORRIR

 CL Gente Boa - O Globo - 30/06/2013


 COM MARIA FORTUNA, ISABELA BASTOS E ADALBERTO NETO



Maio de 1965. Vinte e cinco mil
pessoas lotavam o Maracanãzinho
para acompanhar a disputa
pelo título de Miss Estado da
Guanabara. Vera Lucia Couto, Miss 1964, esperava
a decisão dos 11 jurados para passar a
faixa à sua sucessora. Duas louras ainda estavam
no páreo: Maria Raquel de Andrade,
representando o Botafogo, e Sonia Schuller,
o Clube Caça e Pesca.


Quando Sonia começou a desfilar, a plateia
veio abaixo. “Ela era ensolarada, cheia de
energia e tinha um sorriso lindo”, lembra o
advogado Daslan Mello Lima, criador de um
blog sobre misses. “Foi um frisson incrível
quando essa moça apareceu no palco”, lembra
Vera Lucia Couto, hoje uma funcionária
da Riotur. Sonia acabou não levando o título,
mas, segundo a revista “Manchete” da semana
seguinte, a catarinense que veio para o
Rio ainda criança recebeu “uma das maiores
ovações da história do Maracanãzinho”.



Quarenta e oito anos depois, não ficou nada
daquele sorriso que encantou Daslan e a
multidão no ginásio. Sem nenhum dente na
arcada superior e com a inferior em frangalhos,
Sonia tem dificuldades até para comer
o pastel chinês que o dono de um bar no Jardim
de Alah dá a ela todos os dias. O salgado
costuma ser sua única refeição. A ex-vicecampeã
do Miss Guanabara e Sereia das
Praias Cariocas de 1965 virou uma pedinte
nas ruas de Ipanema, bairro onde mora.



“Sonia sofre de esquizofrenia”, informa seu
irmão, Cláudio Schuller. Ele conta que “a
desgraça da vida dela começou em 1986”, depois
que uma moto a atropelou, perto da
Praça General Osório. Sonia atravessava a
Rua Prudente de Morais, na esquina com a
Teixeira de Melo, quando um motoqueiro ultrapassou
um ônibus parado e a acertou em
cheio. “Naquele dia, ela perdeu os dentes e a
autoestima”, diz Cláudio.

Filho mais velho da ex-miss, Bruno, de 46
anos, confirma o baque. “Dali pra frente tudo
desandou.” Bruno, que há 19 anos mora em
Curitiba, é fruto do curto relacionamento de
Sonia com Sergio Petezzoni, um dos fundadores
do Clube dos Cafajestes, de Copacabana.
Nasceu e foi criado no apartamento 404
do prédio número 42 da Rua Barão da Torre,
Ipanema, onde vivia com a mãe e a avó, a fisioterapeuta
Antonia Schuller.


No último andar fica a famosa cobertura de
Rubem Braga — que Sonia conhece bem. Ela
e Rubem tiveram um namorico. “Era uma
admiração mútua, ela vivia na casa dele”,
conta Cláudio. “Eu ia lá para ler jornal, pegar
uns livros”, conta a ex-Sereia, que, num batepapo
na Visconde de Pirajá (seu habitat), alterna
momentos de extrema lucidez com comentários
que fazem pouco sentido e incluem
ciborgues, androides e assuntos como
“uma nova tecnologia que suga a energia e te
deixa seca como uma ameixa”.

Ex-aluna do colégio N. Sra. Auxiliadora, na
Tijuca, e do Melo e Souza, em Ipanema, Sonia
não fez faculdade. “Achei que esse negócio
de sereia era suficiente”, diz, coçando o
dedão do pé esquerdo, com unhas enormes
e empretecidas. “Minha mãe também achava.
Mas olhaí, virei uma sereia desdentada.”

Sentada na mureta da Praça Nossa Senhora
da Paz, Sonia pede uma pausa na conversa
para acender um Marlboro. No dedo indicador
da mão direita há um anel igualzinho ao
que Kate Middleton usou no noivado com o
príncipe William, aquele mesmo anel que
era de Lady Di. “É bijouteria, claro”, esclarece.
O cigarro, ela conta, é sua perdição. É por
ele que Sonia sai de casa todos os dias. Vai
para as ruas pedir dinheiro para comprar pelo
menos um maço.




A abordagem é direta, sem rodeios. Não fala
que está com fome, não faz drama. “Oi, pode
me dar um real?”. Também não conta que é
para comprar cigarro. “Claro que não. É uma
questão de ética.”

“Peço um real e vou juntando. Quando consigo
comprar um maço, volto para casa”. Num
desses dias, ela foi até o Leblon. Parou em
frente à Padaria Rio-Lisboa e pediu dinheiro a
um taxista. No balcão, seu irmão, Cláudio, tomava
café e fingiu que não a conhecia. “Fiquei
constrangido”, diz. Numa outra vez,
Cláudio, que mora em Friburgo e vem ao Rio
com frequência, estava no supermercado Zona
Sul e a viu, também na porta, (“ela não entra
nos lugares, fica só na porta”) falando sozinha.
“Me senti mal, claro. Mas a chamei de
volta para casa.” É ele também quem paga o
condomínio do apartamento.


A derrocada da ex-Sereia começou mesmo
quando ela perdeu o emprego de executiva
de marketing no BarraShopping, no início
dos anos 80, pouco depois da morte do pai.
“Lembro dela nesta época do shopping, linda,
saindo de carro, salto agulha e tailleur”, diz
o vizinho Mario Vicenzio Cardillo.



Desempregada, Sonia passava temporadas
entre Mirantão, em Visconde de Mauá, e Maricá,
na Região dos Lagos. Voltava para o
apartamento da Barão da Torre com frequência,
mas gostava de ficar nessas cidades com
seus bichos. A casa de Ipanema chegou a ter
quase 50 cachorros, a maioria da raça pointer.
E também gatos, muitos gatos. “Eu ia à feira e
voltava com dois baldes de cabeça de peixe
para dar para eles”, lembra Cláudio.



A família reparou que alguma coisa não estava
bem quando Sonia passou a falar sozinha.
Fazia isso com frequência. Também começou
a riscar as paredes com carvão. Chegava em
casa com cabos de vassoura e sacolas cheias
de lixo recolhido na rua. Foi com esse pano de
fundo, bem nessa fase sinistra, que a moto a
atropelou. “Foi demais para ela”, diz Mario, o
vizinho e fã, que mora no primeiro andar.


Ele, que aos 7 anos foi com a mãe ao Maracanãzinho
torcer por Sonia no concurso de
Miss, não acreditava no que via. “Ela estava
toda quebrada, sem os dentes, irreconhecível.”
Sonia chegou a botar uma prótese na arcada
superior, mas anos depois tirou.



No final dos anos 90, ela chegou a passar duas
semanas internada no Instituto Pinel, onde
foi diagnosticada a esquizofrenia. Como não
tomou os remédios prescritos, voltou à estaca
zero. Desde então, vive de caminhar, em andrajos,
pelas ruas de Ipanema, em busca de
dinheiro para o cigarro. Faz colagens com papéis
e revistas que recolhe nos lixos e quer publicar
um livro. “Mas sem ninguém dizer como
tem que ser. Livro artesanal mesmo.”



Quem a conhece diz que Sonia piorou ainda
mais desde que a mãe morreu, há dois anos.
Ela estaria mais triste, ficando mais tempo fechada
no apartamento, entulhado de coisas
que pega na rua. Sonia usa o elevador e a entrada
de serviço do prédio onde mora com o
filho mais novo, o estudante de Direito Igor,
nascido um ano depois do acidente.



A ex-Sereia das praias cariocas só dorme na cama
de massagem da mãe, talvez para tentar
manter algum contato com ela. Perguntada sobre
o que a deixaria feliz, nem pensa duas vezes.
“Meu sonho dourado é um empadão de
camarão com chopinho bem gelado.”


Nenhum comentário: